Raízes de Uma
Sociedade Fracassada
Por Rodrigo Roddick
Muita
gente não se questiona sobre suas vidas, o que fazem, o que são obrigadas a
fazer, o porquê, e portanto sequer enxergam que fazem parte de um sistema que
não escolheram participar, mas que manda mais nelas do que ela mesma. O sistema
e a vida de um indivíduo estão tão interligados que é quase impossível vê-los
como coisas distintas, mas são. E um pode se separar do outro. Mas se as
pessoas sequer enxergam essas nuances, jamais saberiam como separá-las... e
certamente desconhecem a origem do modelo tradicional de sociedade.
Desde
quando o antigo sistema sucumbiu junto com a cabeça de Luís XVI, o mundo passou
por uma grande transformação no modelo social. Onde antes existia uma troca de
servidão, em que o rei servia seu povo com justiça e proteção e o povo retribuía
com provimento de alimentos e serviços, agora tudo passava a ser através do
consumo. Não há nada que sobreviva nos diais atuais se não for pelo consumo. E
é assim que temos vivido nossas vidas.
Juntamente
com a Revolução Industrial, a Indústria Cultural matou a arte e tomou seu lugar,
provendo a população com produtos de entretenimento, fáceis de serem assimilados
e que não exigem que seus interlocutores pensem; por causa disso, a população
passou a viver em um estado de letargia profunda, acreditando que o modelo
social atual era a única realidade existente, a única que conheciam, pelo menos.
Sem exercitar a reflexão, trabalhando avidamente e consumindo desenfreadamente,
as pessoas se tornaram as máquinas (estas surgiram com a Revolução Industrial)
que sustentam o sistema.
Cinco livros da saga + um livro paralelo. |
Tornando
estas questões mais aparentes, As Crônicas de Gelo e Fogo, de George R. R. Martin,
constroem um mundo antigo baseado na sociedade de servidão, comum na Idade
Média, que incorporam elementos atuais simbolizados nas personagens da trama
como também descreve situações e práticas que existem até hoje.
A
saga ainda não está completa, tendo publicado cinco livros dos sete esperados,
porém já ganhou repercussão internacional ao ser adaptado para a série de TV
Game of Thrones, do canal americano de TV a cabo HBO.
A história, nos livros, é contada a
partir dos pontos de vista dos personagens, descrevendo seus cotidianos e
contando os fatos mais importantes. Há um grande número de personagens, mas
alguns, das principais famílias, dão a sequência da trama. Resumidamente, as
Crônicas de Gelo e Fogo contam a história de uma sobrevivente da dinastia
Targaryen, Daenerys, que era conhecida por sua linhagem provinda dos dragões. Ela
deixou sua terra natal, Weteros, quando ainda era um bebê e assim que tem conhecimento
sobre a história de sua família, ela tenta retornar ao continente para retomar
o Trono de Ferro, que é seu direito de nascença. O mesmo foi usurpado por
Robert Baratheon que reuniu algumas famílias vassalas dos Targaryen provocando
uma rebelião, por causa de uma mulher, Lyanna Stark. Ela foi prometida a
Robert, mas Rheagar Targaryen a raptou quando a conheceu, momento que se apaixonou
por ela.
Quem governava os Sete Reinos unidos
era o pai da Daenerys, Aegon Targaryen, mais conhecido como Rei Louco. Ele
recebeu esse título por causa de sua estranho desejo de queimar pessoas vivas,
todas aquelas que desobedeciam suas leis ou que não eram aliadas ao reino. Por
causa disso, o povo ficou a favor da rebelião quando ela chegou a capital,
Porto Real.
A partir daí, com a morte do Rei Louco
(que aconteceu quando Jamie Lannister o golpeia com sua espada pelas costas),
Robert Baratheon assumiu os sete reinos e os governou por 14 anos. Ele também é
traído pela família Lannister. Sua esposa, que pertence a esta família, comete
adultério fornicando com o irmão, e com ele gera três filhos. Após tramar a
morte de Robert, Cersei Lannister, põe seu filho, Jofrey, fruto de incesto e adultério,
no trono, pois o apresenta como herdeiro legítimo do rei, mesmo contra sua
última vontade que é revelada ao seu amigo fiel Eddard Stark.
Depois que os Lannister assumem o Trono
de Ferro, os Sete Reinos começam a se dividir e Westeros enfrenta guerra civil.
E a trama prossegue a partir daí.
As principais famílias da saga, seus símbolos, castelos e suas palavras. |
Naquela
época a segurança que uma família era conquistada com a derrubada de outras.
Embora houvesse juramento de vassalagem, muitas pessoas o encaram como apenas
palavras ditas. Mas alguns levavam a sério. Na série as famílias representam as
vertentes de um ser humano. Os Starks são aquelas pessoas justas e honrosas,
sinceras, que quando prometem algo vão cumprir. Possuem um caráter íntegro. Já
os Lannister são o oposto. Como a família é representada pelo leão, eles se
acham dignos de governar os demais; só confiam neles mesmos e todos as outras
famílias são encaradas como inimigos. Não estão nenhum pouco presos a
juramentos e recorrem a métodos sujos quando necessários aos seus ideais. Os
Tully representam aquelas pessoas que são muito fraternais, enaltecem a família
e a honra acima de tudo. Os Baratheon são os visionários, aqueles que lutam por
seus ideais. E por ai vai. Cada família tem um conjunto de palavras que definem
a filosofia que rege suas terras. Assim como as pessoas possuem a personalidade
para povoar seu corpo.
A
guerra civil que ocorre logo no começo da história quando o Rei Robert Baratheon
morre, é a representação da política em nosso sistema atual, onde pessoas
brigam para sobrepor suas ideias às demais. Como hoje em dia, no ambiente
fictício dos sete reinos, as famílias nobres pouco consideram o povo e os menos
favorecidos, ou seja, aqueles que os mantém no poder; só estão preocupadas com
quem estará no poder e o quanto isso pode afetar sua liberdade. Infelizmente um
cenário ao qual estamos muito acostumados.
Daenerys Targaryen e seu dragão Drogon, um dos três que possui. |
Independente
de quem está no poder e quem tenta tomá-lo para si, a verdadeira herdeira está
todo outro lado do oceano livrando as pessoas da escravidão, onde a prática
ainda era base do sistema deles. Daenerys não concorda que as pessoas mereçam
esse tipo de tratamento, pois ao seu ver, todos são feitos de carne e água, e
todo sangue é vermelho.
Abrindo
um parêntesis, o preconceito é algo marcante na série, não somente com os menos
favorecidos, como também com os homossexuais. Em todos os tempos houve pessoas
que se relacionavam com o mesmo sexo; na Grécia antiga essa prática além de ser
comum era encorajada pela população. Os jovens masculinos, porque infelizmente
somente o homem tinha direito a educação, tinham que ser iniciados na prática
sexual por seus mestres para se tornarem homens, do contrário eram mau vistos pela
sociedade. Outro ponto importante... a mulher sempre foi desvalorizada. E na
saga não é diferente. Também há muito preconceito envolvendo a suposta fragilidade
feminina. Por isso há a presença de uma personagem, Brienne de Tarth, que é uma
mulher guerreira, provando que assim como os homens a mulher tem o direito de
fazer o que quiser fazer. É tão forte quanto.
Lady Melissandre, a Mulher Vermelha. |
No
geral, As Crônicas de Gelo e Fogo é uma grande análise de George R. R. Martin
sobre o mundo atual. Uma analogia de como o mundo se construiu e ao que ele
deveria prestar atenção de verdade. E isto é muito claro quando percebemos as
duas vertentes que surge na história. Os vivos terão que lutar contra os
mortos. Segundo Melissandre, uma sacerdotisa de um deus chamado de Senhor da
Luz, existem apenas dois deuses no mundo (porque na história há uma constante
narração de vários deuses, uma clara analogia de como o ser humano consegue
criar figuras imagináveis e se deixam dominar pelo que não existe): o Deus da
Luz, alegria e vida, e o Deus do Frio, tristeza e morte, e eles vivem em
constante guerra. Nesse momento eu me pergunto: o que seria isso senão a constatação
clara que NÓS, seres humanos, vivemos constantemente à sombra da morte, que a
qualquer momento podemos morrer?
Um dos Generais dos exércitos dos mortos. |
Martin
quis que pensássemos nisso. Temos a estúpida mania de achar que só vamos morrer
quando estivermos bem velhinhos, numa cama quentinha, partindo enquanto
dormimos... muito disso devido ao fato de estarmos vivendo uma ilusão de
segurança e conforto construído por um sistema que criamos para nos servir. No
entanto, a verdade é que qualquer coisa pode nos matar. Não estamos seguros! A
morte virá para todos nós e isso pode ser a qualquer momento. O falso conforto
que temos nos impede de abrir nossos olhos para essa realidade, e por isso não
vivemos o aqui e agora. Vivemos sempre no futuro... planejando, pensando,
orquestrando... Isso porque o sistema precisa continuar... a ironia é que
criamos um sistema para nos servir, mas somos nós que servimos ao sistema.
Represeiro, onde Bran Stark consegue se conectar com outros represeiros e ver os que elas presenciaram no presente, passado ou futuro. |
As
Crônicas de Gelo e Fogo foram criadas para que todos os seres humanos
despertassem dessa letargia, desse sono profundo induzido, e acordassem para a
vida. E isso só será possível com muito reflexão, por isso que seu caminho é
através da literatura. Leiam. Pensem. Vivam. A morte nos espreita e é a única
certeza que temos. É o nosso destino. Então vamos fazer de nosso caminho até
ela o mais vivo possível.
Para mais conteúdo, acesso o portal nacional de Game of Thrones.
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