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domingo, 8 de maio de 2016

Conto: O Gato Preto

O Veneno do Amor é Ódio
Por Rodrigo Roddick


http://www.psb40.org.br/bib/b159.pdf
Para ler o conto, clique na imagem.

Muitas pessoas já ouviram falar ou já foram protagonistas da frase “é culpa da bebida” para se livrar da culpa por atos vexatórios que possam ter cometidos quando sob efeito do álcool. Realmente ao se ingerir bebidas alcoólicas, o usuário sofre uma explosão de adrenalina que sobrecarrega seu cérebro e o destrava das convenções sociais, regras e leis do seu contexto, sobressaltando os desejos reais e profundos que são mantidos no escuro por não serem bem aceitos socialmente. Portanto as bebidas alcoólicas não tem o poder de criar comportamentos vexatórios ou descondizentes ao habitual, elas apenas proporcionam um destrave, uma quebra de barreiras que inibem sensações, sentimentos, ações e pensamentos que já existem no indivíduo.

Edgar Allan Poe
Ilustrando essa situação, o conto “O Gato Preto” (The Black Cat) de Edgar Allan Poe, publicado na edição de 19 de agosto de 1843 do Saturday Evening Post, apresenta claramente episódios de como a bebida alcoólica pode destravar um ser humano. Edgar Allan Poe (1809-1849) foi o primeiro escritor americano a adotar a escrita profissionalmente, como sua forma de se sustentar, resultando numa vida financeira instável. Era considerado o criado do gênero policial e conhecido por suas histórias envolvendo o macabro, terror, mistério. Integrante do movimento romântico americano, foi um dos primeiros escritores americanos a escrever contos.

“O Gato Preto” conta a história de um homem que adorava demasiadamente os animais e que se casou muito jovem com uma mulher com gostos afins. De todos os animais que ele possuía, o que variava de periquitos, coelhos, macacos, cachorro, peixes etc, o que ele mais gostava era um gato preto chamado Plutão.
Inclinado ao uso de bebidas alcoólicas, o protagonista passa a ficar com ódio de seus bichos de estimação e começa a maltratá-los, sem nenhuma razão aparente senão seu estado de embriaguez. O único que ficava de fora de sua ira, no primeiro momento, era o preferido gato preto. Por constatar, já bêbado, que o animal o estava evitando, ele fica irado e passa a maltratá-lo também, mas o gato instintivamente morde sua mão, aumentando sua raiva e causando sua consequente mutilação. O protagonista retira um canivete do bolso e arranca um dos olhos de Plutão.
Na manhã seguinte, acometido pelo remorso, o homem tenta apaziguar-se ao encontrar o gato, mas é novamente ignorado por ele, o que desperta sua ira em potencial, pendurando com uma forca o animal em uma árvore. Um incêndio ocorre em sua casa no mesmo dia em que o gato é enforcado, mas ele não vê ligação entre os eventos (Sua mulher, no início do conto, revela a superstição que gatos são bruxas transformadas).
Em virtude da perda de sua casa, o casal se muda para outra residência, onde surge misteriosamente outro gato preto com características idênticas a Plutão exceto por uma mancha branca que mais tarde se revela o desenho de uma forca. Ele se afeiçoa ao animal rapidamente, imbuído de remorso e transferindo o amor que sentia por Plutão a ele, mas com o passar da convivência, ele fica aterrorizado com a semelhança, imaginando que isso era algum aviso do além em resposta a ação deplorável que cometeu. Por causa disso, num dia que ele esbarra sem querer no gato, fica furioso e tenta matá-lo, mas sua mulher intervém. Acometido pela fúria, ele acaba inserindo o machado na cabeça dela.
Sem saber o que fazer, o protagonista enterra sua esposa nas paredes do porão de sua nova residência, aproveitando-se de sua umidade, percebendo que após esse evento nunca mais vira o gato preto novamente, acreditando que isso se devia ao temor que ele sentiu diante de sua raiva.

Naturalmente, muitas buscas policiais foram feitas na residência, mas nenhum vestígio de sua esposa sumida era encontrado. Numa delas, tentando desviar a atenção dos policiais na revista, ele fala sobre a construção da casa e acaba batendo com a bengala justamente onde havia enterrado sua esposa. Um miado é ouvido e os policias quebram a parede, descobrindo o corpo dela e o gato preto aninhado em sua cabeça. Em seu desespero para esconder as evidências do assassinato de sua mulher, ele havia enterrado, sem perceber, o delator de seu crime junto com ela.


O próprio protagonista ao narrar o conto revela que não existe nenhum mal tão vil quanto o álcool, capaz de transformar um homem amável e dócil em um violento, enfatizando a culpa da bebida por suas ações, o que se tornou senso comum. O conto exemplifica claramente que é mais fácil transferir a culpa pelas ações cometidas no estado de embriaguez para a bebida do que arcar com as consequências dela.

O ser humano é um ser vivo social, mas nem por isso deixa de apresentar sua individualidade, as sensações e sentimentos que o compõe e o faz ser único. Dentro da sociedade existe um modelo, um padrão de comportamento que é aceitável, um modo genérico de como as pessoas devem agir quando diante de outras em determinada situação e lugar. Muitas das sensações, instintos e desejos de um indivíduo não é bem aceita em sociedade, portanto ele acaba internalizando-os, escondendo-os do julgamento de outrem, preferindo o comportamento padrão na presença de outras pessoas. Resumidamente, isso significa que o ser humano não tem o direito de ser quem é em qualquer lugar. É vetado de si sua verdadeira forma em certos ambientes. Decorrente desse processo, o indivíduo adota a utilização de máscaras, identidades fictícias; uma que é bem aceita socialmente e uma para satisfazer seus desejos íntimos.

Todo ser humano utiliza máscaras, elas estão tão intrínsecas em nosso cotidiano e em nossa pele que a transição de uma para outra ocorre tão normalmente como a troca de roupa. Utilizar-se de máscaras vem sendo estimulado e reproduzido pela sociedade de modo tão internalizado que as pessoas sequer discutem, ou percebem, sua existência, mas a reafirmam sempre em julgamentos. Com certeza, qualquer pessoa já ouviu alguém dizer “Ela não pode se comportar dessa maneira! Estamos num casamento” ou “Veja como ele está bêbado! Na frente do seu chefe!”. Isso é a perfeita ilustração da reprodução automática e imperceptível do uso de máscaras. As pessoas querem, exigem, que as outras utilizem sua máscara que melhor se adeque a ocasião. Por exemplo, quando se vai ao cinema, a máscara é uma (ser descolado, ficar em silêncio, comer pipoca, não incomodar os demais), diferente de quando se está em uma entrevista de emprego (apreensivo, pomposo, envolvido numa atmosfera erudita, oficial).

Dada a facilidade que se tem para construir máscaras, o processo contrário não ocorre da mesma forma. Para desvestir-se de uma que é coerente ao socialmente aceito, o indivíduo fica despido, “nu”, na frente dos demais. É exigido um esforço inimaginável, como que ele tivesse que destruir um muro de concreto muito duro que separa seu ser social do seu ser íntimo. Esse esforço é completamente superado pela ingestão de bebidas alcoólicas, que minimizam a construção social, os padrões, as regras, até mesmo as leis, dentro da cabeça desse usuário. O álcool destrói facilmente o muro de concreto, as máscaras sociais, o comportamento padrão, deixando a pessoa, em determinado grau, desnuda, sem máscaras, livre do convencionalismo, instintiva.

É possível compreender, por essa linha de pensamento, que a bebida alcoólica não tem o poder para transformar pessoas de um determinado jeito para o seu antagônico, o que ela consegue fazer é superar os bloqueios mentais que o indivíduo tem em revelar seus reais sentimentos, sensações, desejos e ações. O álcool, visto desse modo, não seria um grande revelador de caráter?

Em decorrência de seu uso, a desconstrução das máscaras resulta em ações que não são consideradas bem aceitas em sociedades, portanto alguma atitudes são encaradas como vexatórias, vergonhosas, repudiadas; portanto o usuário, ao contrário de admitir as consequência, culpa a bebida por elas.

No conto de Edgar Allan Poe, o protagonista se utiliza dessa desculpa para cometer as atrocidades que realizou, mas a verdade é que ele já tinha predisposição para cometê-las. O que o autor quer discutir com o leitor é justamente esse pensamento: será que é a bebida que faz você cometer “atrocidades” ou ela apenas revela o que você quer fazer? O álcool é realmente o demônio ou este é seu verdadeiro ser? Não obstante, essas questões tem um fundamento que se enquadra no estudo de conhecer o ser humano selvagem, aquele que é em primeira instância animal, um homem instintivo. A discussão que Poe provoca nos leitores é o questionamento das máscaras que as pessoas utilizam... será que vale a pena ignorar seus reais desejos e instintos em prol de uma sociedade que o obriga a ser falso, vestir máscaras? Será que isso é viver? O quão se está vestido de máscaras que torna impossível enxergar a própria face no espelho?

Além de seu conto evocar esses pensamentos, ele ainda ilustra, exemplifica, como o ser humano é capaz de realizar qualquer ação ao construir um homem dócil, dotado de amor, transitando para o ódio, o sentimento completamente oposto... acabando por matar sua esposa, ou seja, se livrar do amor... matar o amor. O protagonista é a representação de como Poe via as pessoas a sua volta. Ele sentia tanto amor, tanto amor, que não sabia o que fazer com tamanho sentimento. De tão forte e desesperado ele passou a machucá-lo, a doer, e por isso o protagonista quis dar fim a ele.



Ao colocá-lo maltratando os bichos de estimação e matando sua esposa, Poe suscita o cenário a sua volta: pessoas falsas se “relacionando” artificialmente, dotadas de sentimentos reais, mas sem saber o que fazer com eles. Um teatro de bonecos atuando de viver num palco chamado Terra.


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