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segunda-feira, 30 de maio de 2016

Filme: Jurassic Park

A Velha História
Por Rodrigo Roddick


Infelizmente é muito comum hoje em dia nos depararmos com notícias relacionadas a morte de animais porque um ser humano cruzou seu caminho, ou porque foram maltratados por eles, ou até mesmo porque o homem criou algum tipo de construção industrial que tornou o habitat impróprio para as espécies que vivem ao redor. Nessas circunstâncias, muitas pessoas não discutem a mensagem velada, o que vem subliminarmente revelado nesses atos: a superioridade do homem para com a natureza.

Jurassic Park (1993), de Steven Spielberg, discute principalmente a ilusão de domínio que o homem exerce (ou acha que exerce) sobre a natureza, e narra os desdobramentos dessa situação.

Velociraptor
O filme começa com um acidente envolvendo um velociraptor e um funcionário do Jurassic Park, que é morto quando tentam transferir o animal para sua nova moradia. Em seguida mostra a descoberta de uma ossada fossilizada de velociraptor pelo paleontólogo Alan Grant, mas que é atrapalhada pela chegada de John Hammond, de helicóptero, jogando poeira sobre os ossos. Quando Alan procura o recém chegado para reclamar sobre o incidente, descobre que está diante de seu investidor, o homem que custeia as suas escavações. No mesmo momento ele e sua namorada, a paleobotânica Ellie Sattler, são convidados a se juntar a ele, ao cientista Ian Malcolm e o advogado Donald Genaro, para visitarem um parque temático na Ilha Nublar, que fica no litoral da Costa Rica. Lá eles descobrem que as atrações do parque são dinossauros e ficam espantados diante da eventualidade peculiar. Juntamente com os netos de John Hammond, a equipe inicia uma visita nas dependências do Jurassic Park.
Donald Genaro representa o grupo de investidores que apoiam o projeto de John que, por causa do acidente com o funcionário, resolvem inspecionar o parque na procura de possíveis falhas de segurança. Para que o laudo tenha credibilidade diante dos investidores, é necessário que as autoridades na área endossem o documento, e por esse motivo, Ian, Alan e Ellie são convidados a visitar o parque.

A questão principal que se apresenta no filme é: homens e dinossauros poderiam conviver juntos, hoje? A resposta foi bem óbvia.

Cena retirada do filme que demonstra a resposta da pergunta: dinossauros e o homem, juntos?

Os dinossauros são animais que foram extintos no final do período cretáceo por causa, dentre muitas teorias, do impacto de um cometa ao planeta. Naquela época não existia sombra do aparecimento do homem na Terra, que surgiu há cerca de um milhão de anos, ganhando uma distância de tempo considerável dos “dinos”, aproximadamente 150 milhões de anos. Mas, dentro do ambiente fictício de Jurassic Park, essas duas raças foram postas juntas. É claro que, quando John Hammond, pensou em trazer de volta os dinossauros, ele não pretendia forçar uma convivência literal entre as duas raças, mas, de acordo com as opiniões divergentes apresentadas no filme, o homem sempre tem a ilusão de que pode controlar a natureza.

Esta cena ícone é uma metáfora sobre o homem comercializar a natureza; embalá-la e vendê-la.

Essa questão já começa a ser discutida logo de início quando os personagens descobrem a existência de dinossauros em pleno século XX, mas quando eles conhecem as instalações do parque e se encontram com a equipe de geneticistas, ela ganha mais corpo. É manifestado no filme, através de um geneticista, que os dinossauros, ao nascerem, são originalmente fêmeas, mas que ao receberem um hormônio extra, se tornam machos. Para impedir que eles se reproduzissem descontroladamente na Ilha Nublar, os geneticistas impedem que esse hormônio extra aja no embrião, ocasionando o nascimento de dinossauros apenas do sexo feminino. Ian Malcolm questiona o geneticista dizendo que o homem não deveria brincar com esse poder (o poder da criação) e que deveriam considerar o a imprevisibilidade que seus atos podem desencadear, o que ele chama de Teoria do Caos.

Ian personifica o pensamento filosófico do homem em avaliar se determinada descoberta deve ser realmente realizada, pois as implicações que ela traz pode desencadear acontecimentos catastróficos. O exemplo visto no filme é que obviamente um grupo só de fêmeas não poderia se reproduzir sozinha, entretanto Ian afirma, e assim construindo sua célebre frase, que a vida encontra um meio.

braquiossauros e estegossauros.

Em um almoço que o dono do Jurassic Park, o advogado e as três autoridades conhecidas realizam antes de visitarem o lugar, eles discutem essas implicações, decorrente do ato de trazer os dinossauros para conviver com o homem. Mais uma vez Ian diz que John se preocupou tanto em conseguir tecnologia para trazer os dinossauros a vida que não se perguntou se devia fazer isso. Por quê? Os dinossauros são uma raça que foram extinta naturalmente, não pela intervenção do homem, portanto não eram para eles existirem hoje, mas o homem perverte o curso natural ao determinar que eles voltariam. Ele não deveria mexer com o poder da natureza, pois não compreende e não conhece seus mistérios. Outra vez é destacado o pensamento embutido no filme: a superioridade do homem diante da natureza.

Cena em que Alan, Ellie e Ian se deparam com um dinossauro pela primeira vez

Hoje em dia vemos isso com frequência. As árvores podem ser destruídas para virar móveis e papel, os animais podem ser caçados para comer e virar roupas, mas o homem não! O homem tem que viver! Porque tudo que existe foi feito para ele usar... Não é bem assim. Essa é apenas nossa atitude, mesmo sem acreditarmos ou nos darmos conta dela. O homem se acha maior que todas as demais manifestações naturais, mas sequer pensa sobre o equívoco de seus pensamentos, afinal uma árvore vive 800 anos em média, os animais possuem atributos (presas, garras, asas, barbatanas, caudas) superiores aos do homem, e os mares, montanhas, sol e ar independem da existência humana. O homem é realmente superior?

Todos esses questionamentos nos fazem analisar sobre o nosso comportamento diante da natureza e nos obriga a compreender que somos apenas parte de um sistema natural. E isso fica bastante evidente em uma frase de Ian Malcolm que eu considero a melhor do filme.

Dilofossauros
Ainda na cena do almoço, diante dos questionamentos contrários de Ian, John Hammond não entende como um cientista manifesta essas ideias, uma vez que cientistas realizam descobertas o tempo todo. A descoberta é a razão deles existirem. Ele manifesta sua incompreensão dizendo “como podemos – nós cientistas, o homem – estar a luz de uma descoberta e não agir?”, pergunta que Ian rebate respondendo que ele não entende a beleza que eles veem na descoberta, uma vez que ela é penetrante e deformadora... aí  nesse momento ele diz a melhor frase do filme, que o resume completamente: “o que você chama de descoberta, eu chamo de violação do mundo natural”.

Esta frase é a resposta para a questão realizada pelo próprio filme.



terça-feira, 24 de maio de 2016

Filme: X-men - Apocalipse

A Ideia que Construiu a Vida
Por Rodrigo Roddick

Cartaz do filme.
É verdade que estamos todos conectados por um sistema que através da moeda nos faz interagir para que troquemos um serviço por um produto ou um produto por outro. A moeda, vista desse jeito, se torna o caminho até o que se quer. Mas o que se vê hoje em dia é o exagerado valor que essa moeda ganhou. Sobrepôs os produto, o serviço, a troca, o carinho, o amor, as pessoas, a vida... e simbolizou apenas o poder.

Criamos um sistema para suprir nossas necessidades e ele supriu. Mas por que é tão difícil enxergá-lo apenas assim? Como um sistema? Como uma ideia que deu certo? Porque ele não é mais um simples sistema. Destruiu e substituiu o que um dia chamamos de vida. Neste dia a nossa vida acabou é uma ideia com a mesma imagem assumiu seu lugar. O que estamos fazendo hoje, senão apenas dando continuidade a essa ideia?

Discutindo paralelamente essa questão, encontrei esses dias (em um momento de lazer qual considero muito valioso) um filme que ressalta esses pensamentos. Em X-men –Apocalipse, percebi o quanto os mutantes há muito (porque acompanho as histórias desde pequeno pelas HQs, desenhos e filmes) querem me dizer: o mundo não é o que parece. E aí chega o dia em que alguém tem a coragem de dizer isso em voz alta, mesmo na frente de um bando de outros que estão apontando armas para ele. E foi isso o que eu vi no filme.

X-men – Apocalipse tem uma história que há muito foi criada para as HQs. Um mutante muito poderoso, que nasceu no antigo Egito, tem a habilidade de transportar sua consciência e seus poderes para outro corpo quando o seu está muito velho (seu poder é diferente nas HQs, onde ele pode transformar sua massa corpórea no que quiser). O filme começa em um desses momentos, em que ele está transferindo sua vida para outro corpo, um voluntário para receber e ser o grande En Sabah Nur (pois ele é considerado um deus, o verdadeiro deus sobre a Terra), quando é traído por seus súditos. Eles tentam enterrá-lo debaixo da pirâmide e matam seus quatro cavaleiros (mutantes que o protegem quando ele está vulnerável) e realmente conseguem enterrá-lo vivo.
Os milênios passam e Moira McTaggert, uma agente da CIA e amiga de Charles Xavier, sem querer, acaba provocando condições favoráveis ao ressurgimento de En Sabah Nur, que realmente ressurge e se torna o Apocalipse, conquistando novos quatro mutantes para serem seus cavaleiros, entre eles Erik Magnus Lehnsherr.
Charles Xavier recruta novos mutantes para a sua escola de superdotados, mas é capturado por Apocalipse, que quer transferir-se para o corpo dele na intenção de conseguir o poder telepático de Xavier e continuar seu plano de reconstruir a Terra. Os novos mutantes juntamente com os antigos vão em busca de seu mentor, descobrindo onde ele está graças a mensagem particular que ele compartilha com Jean Grey.

Apocalipse e seus quatro cavaleiros, Tempestade, Magneto, Anjo e Psylocke.
O mutante mais importante do filme traz consigo uma riqueza de pensamentos que podemos nos apropriar para refletir. Logo que ele aparece, no início do filme, ele é retratado com um deus egípcio, ou seja, alguém maior e mais importante que a raça humana, alguém superior. Entretanto ele é apenas um homem, a evolução do homem, um mutante. Não um deus. Esse paradoxo simbolizado em sua imagem constrói a questão: e se Deus fosse um homem? E se o homem fosse Deus? E se o homem criou Deus, ao invés do contrário? Obviamente não é possível se chegar em uma resposta clara para isso, mas como são as questões que movimentam o mundo, é preciso conhecê-las para caminhar com ele.

En Sabah Nur (Apocalipse)
Apocalipse representa essa filosofia, de que Deus nada mais é do que o reflexo humano, o pensamento do homem em existir algo maior que si mesmo e, pelo exercício do pensamento, acaba criando algo maior que ele, de fato; sendo doutrinado por este algo, no processo. O homem seria encarado como “O Criador” nessa tese, e não Deus, o que reflete o verdadeiro poder de cada indivíduo, sendo este o objetivo do personagem. O poder que o homem tem para criar tudo o que quiser, inclusive o mundo.

Quando Apocalipse revela que seu plano é reconstruir o mundo, não é exatamente destruir a Terra o que ele deseja, e sim o sistema a qual todas as pessoas estão vinculadas. Ele não admite que seus filhos sejam inferiores a uma ideia que os humanos construíram, porque eles têm poder para criar tudo isso, serem superiores. Para entender melhor essa ideia, devemos considerar que os mutantes são uma metáfora que representa as pessoas que conhecem o seu verdadeiro poder, ou seja, aquelas que não estão iludidas achando que o sistema é seu mundo, mas compreendendo que é apenas uma ideia construída por outros seres humanos.

De uma maneira mais fácil, podemos entender essa situação da seguinte maneira: quando nascemos, vamos aprendendo a nos adaptar ao estilo de vida que outros de nós que chegaram antes vivem, e percebemos como esse mundo é complexo e enorme. Entretanto ninguém nos ensina e nos revela que esse mundão foi construído por pessoas... pessoas igual a nós. Ou seja, nós também podemos criar o mundo e recriá-lo da nossa maneira. Esse é o poder do qual estou falando. Este é o poder que faz de um ser humano comum ser um Criador. Não é à toa que os mutantes (humanos superpoderosos) possuem poderes (criação). Os poderes que os mutantes têm são uma metáfora do poder que o ser humano tem, mas desconhece...

Agora voltando ao Apocalipse... é por isso que ele não gosta de ver os mutantes abaixo de quem sequer conhece seu poder. E deseja destruir o mundo para mostrar como ele (o símbolo de uma pessoa liberta dos paradigmas) consegue construir outro. E o fato dele ser o vilão na história revela como essas pessoas que se libertam do sistema são vistas pelas outras pessoas que ainda estão presas, a forma como são vistas pela grande massa. O pensamento da grande massa é o pensamento do sistema difundido, e ele enxerga essas pessoas superpoderosas (mutantes) como ameaças. Desse modo também dá pra compreender por que os mutantes sofrem preconceito... pela ameaça que representam ao modelo tradicional de vida. (Não obstante, X-mem foi criado em uma época em que a sociedade americana vivia uma grave crise social no que dizia respeito ao preconceito a todas formas diferentes de uma pessoa ser. Discriminavam negros, homossexuais, mulheres, estrangeiros, etc.)

O próprio nome “Apocalipse” é uma apropriação da bíblia para causar ainda mais reflexão. Quando Moira McTaggert supõe diante de Charles que a bíblia pode ter se baseado nele, está sendo revelado o pensamento que mais irrita a religião: e se a bíblia foi escrita pelo homem? E se sua história são apenas metáforas de um cotidiano antigo? Esta cena cria a suposição de que o homem criou a religião e suas nuances e, mais uma vez, revela o poder que a humanidade possui para construir o mundo.

Uma cena muito interessante (se é que dá pra escolher uma) do Apocalipse é o momento que ele para diante de uma televisão e a Tempestade lhe pergunta o que ele está fazendo, e ele responde: “aprendendo”. Não tem como não perceber a crítica evidente nesse momento! Obviamente existe ali o pensamento que a população deu seu poder de reflexão (aprender) para a mídia (tv), deixando que ela governe e crie seus pensamentos, ou seja, que defina o que a população irá pensar. É um crítica ao indivíduo do século XXI, que vive governado pela mídia, ao invés de ser governando por si mesmo. E a mídia é aliada do sistema, que também o governa.

Mística (Raven)
Deixando um pouco este antagônico personagem de lado, encontramos outro que também traz uma série de questões. Quem acompanhou as HQs, ou até mesmo os desenhos de X-men, sabe que a Mística também é uma vilã. Contudo ela é vista como heroína no filme, inspirando vários mutantes a seguirem sua filosofia de se aceitarem como são. Mística é uma personagem muito diferente do ser humano. Tem pele azul, vive nua, e tem um rosto monstruoso com seus olhos amarelados. Essa imagem que ela constrói, as pessoas preconceituosas a denominariam como uma aberração, no entanto é justamente a mesma imagem que a faz ser heroína dos mutantes. Quando ela aceita quem ela realmente é, se observa claramente o desprezo por suas máscaras sociais, e convida a todos os mutantes a fazer o mesmo... Todas as pessoas verdadeiras detestam mentiras, então como conviveriam com uma imagem mentirosa? E é isso que uma máscara social é: uma mentira. É por isso que ela é heroína, porque tem coragem de se mostrar como ela é. Mística não veste roupas... não veste máscaras, não veste pudores, não veste falsidade... Foi uma grande sacada aproveitar essa personagem (uma vilã) para expor um pensamento tão bonito, não foi?

Charles Xavier
E se uma pessoa fosse capaz de sentir todas as outras e entender seus anseios, suas frustrações, seus sofrimentos, suas tristezas? O símbolo da empatia, o modelo utópico que o ser humano deveria seguir, é retratado no personagem Charles Xavier. Ele tem acesso ao íntimo de todas as pessoas existentes no mundo, e assim consegue compreender que, em seus desejos, medos e tristezas, elas são iguais. É por compreender isso que ele tanto protege e tem fé no ser humano. Tem esperança que há de chegar o dia em que as pessoas vão conseguir enxergar o que ele já enxerga: que todos nós somos um. Que o outro sou eu, uma variante de mim... e assim merece o mesmo cuidado que dou a mim. Apocalipse, porém, por ter uma representação metafórica diferente da de Charles, ele o vê como a chave para completude de seu plano... o que isso significa? Xavier tem acesso a todas as pessoas, logo... imagine que você conhece a verdade (que o que entendemos de mundo é apenas um sistema criado pelos seres humanos, e que o mundo de verdade não é isso), você não sentiria o desejo de compartilhar essa conhecimento com todos? Agora imagine que fosse possível entrar na mente de todas as pessoas? Nem precisaria convencê-las. Elas acreditariam na verdade, seriam a verdade. É por isso que Apocalipse diz que quando tiver o poder de Charles, ele vai poder estar em todo lugar, ser todo mundo. Ou seja, vai lembrar a raça humana quem construiu esse mundo.

Como já dito aqui antes, os mutantes são as pessoas em nosso cotidiano que detém o verdadeiro poder, o de ser quem são, o de criar as coisas, as que não são doutrináveis; entretanto existe outras ideias que metaforicamente os compõe: a animalidade do ser humano e sua evolução natural. Todo ser humano é um animal, mas ele se recusa a se ver dessa maneira, é por isso que alguns mutantes tem aparência e instintos animais, para relembrar que todos somos animais, e fazendo um personagem aceitar que ele é aquele animal azul e peludo, está nos ajudando a aceitar que também somos animais. Além disso, nós estamos vivendo um total descaso a natureza, o que se traduz em nos acharmos superior a ela. Os mutantes, como são a evolução do homo sapiens sapiens, representa a nossa evolução em se tornar um com a natureza, em finalmente entendê-la e ser ela; representa a evolução do nosso pensamento atrasado de enxergar a vida (que é pulsante na natureza vegetal e animal) como inferior ao conhecimento, mente, ciência.

Principais mutantes no filme.
X-men, de modo geral, seria um grande apelo a sociedade na tentativa de acabar com a superioridade humana... Quando vamos entender que somos todos iguais diante da natureza? Quando vamos respeitar as diferenças aparentes que possuímos? Quando vamos deixar de matar a natureza para construir coisas com seu cadáver? Quando vamos parar de nos matar? Tudo o que fazemos, fazemos em nome do progresso... E perseguindo o progresso estamos regredindo... X-men foi criado na década de 60, mas até hoje discute as mesmas questões da época... isso porque,  mesmo depois de 53 anos, não evoluímos um dia sequer. Estamos realmente atrasados.


domingo, 22 de maio de 2016

Livro: As Crônicas de Gelo e Fogo

Raízes de Uma Sociedade Fracassada
Por Rodrigo Roddick

Muita gente não se questiona sobre suas vidas, o que fazem, o que são obrigadas a fazer, o porquê, e portanto sequer enxergam que fazem parte de um sistema que não escolheram participar, mas que manda mais nelas do que ela mesma. O sistema e a vida de um indivíduo estão tão interligados que é quase impossível vê-los como coisas distintas, mas são. E um pode se separar do outro. Mas se as pessoas sequer enxergam essas nuances, jamais saberiam como separá-las... e certamente desconhecem a origem do modelo tradicional de sociedade.

Desde quando o antigo sistema sucumbiu junto com a cabeça de Luís XVI, o mundo passou por uma grande transformação no modelo social. Onde antes existia uma troca de servidão, em que o rei servia seu povo com justiça e proteção e o povo retribuía com provimento de alimentos e serviços, agora tudo passava a ser através do consumo. Não há nada que sobreviva nos diais atuais se não for pelo consumo. E é assim que temos vivido nossas vidas.

Juntamente com a Revolução Industrial, a Indústria Cultural matou a arte e tomou seu lugar, provendo a população com produtos de entretenimento, fáceis de serem assimilados e que não exigem que seus interlocutores pensem; por causa disso, a população passou a viver em um estado de letargia profunda, acreditando que o modelo social atual era a única realidade existente, a única que conheciam, pelo menos. Sem exercitar a reflexão, trabalhando avidamente e consumindo desenfreadamente, as pessoas se tornaram as máquinas (estas surgiram com a Revolução Industrial) que sustentam o sistema.

Cinco livros da saga + um livro paralelo.

Tornando estas questões mais aparentes, As Crônicas de Gelo e Fogo, de George R. R. Martin, constroem um mundo antigo baseado na sociedade de servidão, comum na Idade Média, que incorporam elementos atuais simbolizados nas personagens da trama como também descreve situações e práticas que existem até hoje.

A saga ainda não está completa, tendo publicado cinco livros dos sete esperados, porém já ganhou repercussão internacional ao ser adaptado para a série de TV Game of Thrones, do canal americano de TV a cabo HBO.

A história, nos livros, é contada a partir dos pontos de vista dos personagens, descrevendo seus cotidianos e contando os fatos mais importantes. Há um grande número de personagens, mas alguns, das principais famílias, dão a sequência da trama. Resumidamente, as Crônicas de Gelo e Fogo contam a história de uma sobrevivente da dinastia Targaryen, Daenerys, que era conhecida por sua linhagem provinda dos dragões. Ela deixou sua terra natal, Weteros, quando ainda era um bebê e assim que tem conhecimento sobre a história de sua família, ela tenta retornar ao continente para retomar o Trono de Ferro, que é seu direito de nascença. O mesmo foi usurpado por Robert Baratheon que reuniu algumas famílias vassalas dos Targaryen provocando uma rebelião, por causa de uma mulher, Lyanna Stark. Ela foi prometida a Robert, mas Rheagar Targaryen a raptou quando a conheceu, momento que se apaixonou por ela.
Quem governava os Sete Reinos unidos era o pai da Daenerys, Aegon Targaryen, mais conhecido como Rei Louco. Ele recebeu esse título por causa de sua estranho desejo de queimar pessoas vivas, todas aquelas que desobedeciam suas leis ou que não eram aliadas ao reino. Por causa disso, o povo ficou a favor da rebelião quando ela chegou a capital, Porto Real.
A partir daí, com a morte do Rei Louco (que aconteceu quando Jamie Lannister o golpeia com sua espada pelas costas), Robert Baratheon assumiu os sete reinos e os governou por 14 anos. Ele também é traído pela família Lannister. Sua esposa, que pertence a esta família, comete adultério fornicando com o irmão, e com ele gera três filhos. Após tramar a morte de Robert, Cersei Lannister, põe seu filho, Jofrey, fruto de incesto e adultério, no trono, pois o apresenta como herdeiro legítimo do rei, mesmo contra sua última vontade que é revelada ao seu amigo fiel Eddard Stark.
Depois que os Lannister assumem o Trono de Ferro, os Sete Reinos começam a se dividir e Westeros enfrenta guerra civil. E a trama prossegue a partir daí.

As principais famílias da saga, seus símbolos, castelos e suas palavras.

Naquela época a segurança que uma família era conquistada com a derrubada de outras. Embora houvesse juramento de vassalagem, muitas pessoas o encaram como apenas palavras ditas. Mas alguns levavam a sério. Na série as famílias representam as vertentes de um ser humano. Os Starks são aquelas pessoas justas e honrosas, sinceras, que quando prometem algo vão cumprir. Possuem um caráter íntegro. Já os Lannister são o oposto. Como a família é representada pelo leão, eles se acham dignos de governar os demais; só confiam neles mesmos e todos as outras famílias são encaradas como inimigos. Não estão nenhum pouco presos a juramentos e recorrem a métodos sujos quando necessários aos seus ideais. Os Tully representam aquelas pessoas que são muito fraternais, enaltecem a família e a honra acima de tudo. Os Baratheon são os visionários, aqueles que lutam por seus ideais. E por ai vai. Cada família tem um conjunto de palavras que definem a filosofia que rege suas terras. Assim como as pessoas possuem a personalidade para povoar seu corpo.

A guerra civil que ocorre logo no começo da história quando o Rei Robert Baratheon morre, é a representação da política em nosso sistema atual, onde pessoas brigam para sobrepor suas ideias às demais. Como hoje em dia, no ambiente fictício dos sete reinos, as famílias nobres pouco consideram o povo e os menos favorecidos, ou seja, aqueles que os mantém no poder; só estão preocupadas com quem estará no poder e o quanto isso pode afetar sua liberdade. Infelizmente um cenário ao qual estamos muito acostumados.

Daenerys Targaryen e seu dragão Drogon, um dos três que possui.

Independente de quem está no poder e quem tenta tomá-lo para si, a verdadeira herdeira está todo outro lado do oceano livrando as pessoas da escravidão, onde a prática ainda era base do sistema deles. Daenerys não concorda que as pessoas mereçam esse tipo de tratamento, pois ao seu ver, todos são feitos de carne e água, e todo sangue é vermelho.

Abrindo um parêntesis, o preconceito é algo marcante na série, não somente com os menos favorecidos, como também com os homossexuais. Em todos os tempos houve pessoas que se relacionavam com o mesmo sexo; na Grécia antiga essa prática além de ser comum era encorajada pela população. Os jovens masculinos, porque infelizmente somente o homem tinha direito a educação, tinham que ser iniciados na prática sexual por seus mestres para se tornarem homens, do contrário eram mau vistos pela sociedade. Outro ponto importante... a mulher sempre foi desvalorizada. E na saga não é diferente. Também há muito preconceito envolvendo a suposta fragilidade feminina. Por isso há a presença de uma personagem, Brienne de Tarth, que é uma mulher guerreira, provando que assim como os homens a mulher tem o direito de fazer o que quiser fazer. É tão forte quanto.

Lady Melissandre, a Mulher Vermelha.

No geral, As Crônicas de Gelo e Fogo é uma grande análise de George R. R. Martin sobre o mundo atual. Uma analogia de como o mundo se construiu e ao que ele deveria prestar atenção de verdade. E isto é muito claro quando percebemos as duas vertentes que surge na história. Os vivos terão que lutar contra os mortos. Segundo Melissandre, uma sacerdotisa de um deus chamado de Senhor da Luz, existem apenas dois deuses no mundo (porque na história há uma constante narração de vários deuses, uma clara analogia de como o ser humano consegue criar figuras imagináveis e se deixam dominar pelo que não existe): o Deus da Luz, alegria e vida, e o Deus do Frio, tristeza e morte, e eles vivem em constante guerra. Nesse momento eu me pergunto: o que seria isso senão a constatação clara que NÓS, seres humanos, vivemos constantemente à sombra da morte, que a qualquer momento podemos morrer?

Um dos Generais dos exércitos dos mortos.

Martin quis que pensássemos nisso. Temos a estúpida mania de achar que só vamos morrer quando estivermos bem velhinhos, numa cama quentinha, partindo enquanto dormimos... muito disso devido ao fato de estarmos vivendo uma ilusão de segurança e conforto construído por um sistema que criamos para nos servir. No entanto, a verdade é que qualquer coisa pode nos matar. Não estamos seguros! A morte virá para todos nós e isso pode ser a qualquer momento. O falso conforto que temos nos impede de abrir nossos olhos para essa realidade, e por isso não vivemos o aqui e agora. Vivemos sempre no futuro... planejando, pensando, orquestrando... Isso porque o sistema precisa continuar... a ironia é que criamos um sistema para nos servir, mas somos nós que servimos ao sistema.

Represeiro, onde Bran Stark consegue se conectar com outros represeiros e ver os que elas presenciaram no presente, passado ou futuro.


As Crônicas de Gelo e Fogo foram criadas para que todos os seres humanos despertassem dessa letargia, desse sono profundo induzido, e acordassem para a vida. E isso só será possível com muito reflexão, por isso que seu caminho é através da literatura. Leiam. Pensem. Vivam. A morte nos espreita e é a única certeza que temos. É o nosso destino. Então vamos fazer de nosso caminho até ela o mais vivo possível.

Para mais conteúdo, acesso o portal nacional de Game of Thrones.