Vida Cinza, de
cinzas, em Cinza
Por Rodrigo Roddick
O
conceito metafórico de preto e branco, e vida cinza, é bem conhecido por grande
parte das pessoas, mas será que elas entendem seu real significado? Muitas
aplicam esta ideia ao amor... e estão certas ao fazê-lo, mas o amor é a
culminância das emoções e não apenas uma emoção.
Cidade futurista onde vivem. |
Em
O Doador de Memórias se observa claramente o uso dessa metáfora. O filme mostra uma sociedade pacífica, em
paz, regida sob regras absolutas que garantem realmente a ordem. Nela,
as pessoas são todas tratadas com direitos iguais e tudo funciona corretamente; todos os institutos sociais estão bem definidos, e todas as pessoas recebem uma
atribuição para que o sistema continue a funcionar. É a partir do recebimento de
sua função na vida adulta, em que Jonas, o protagonista, é selecionado como novo
Receptor de Memórias, que a história começa a apresentar os problemas
provenientes deste modelo social. Jonas descobre que as memórias das pessoas lhes foram roubadas, deixando apenas o básico, aquelas que seriam necessárias
apenas para a execução de tarefas. Quando começa a recebê-las do doador, ele passa a se sentir confuso e distante da sociedade. Muda-la a qualquer
custo e devolver a todos as memórias roubas passa a ser sua principal motivação.
Sociedade. |
O
filme se inicia em preto e branco pra demostrar a falta de cor na vida das pessoas, que estão vivas, mas não estão vivendo, apenas realizam tarefas diariamente que são necessárias para sustentar
o sistema, nada mais. As pessoas desconhecem todos os sentimentos dos
relacionamentos, pois não sabem o que elas são. Quando Jonas é
selecionado como receptor, ele passa a enxergar as cores da vida, pouco a
pouco, e então percebe o quanto estava “vivendo
no automático.” A falta de cor também é uma alusão ao cinza dos centros
urbanos, cor que predomina o “habitat natural” dos seres humanos, lugar em que
se sentem confortáveis. É irônico que o homem tenha que matar a natureza para se sentir natural.
Asher, Fiona e Jonas |
Tal
qual em nossa sociedade, cada um recebe um tarefa e fica nela durante toda sua
vida, entorpecido pelo trabalho, sem saber que existe um mundo de possibilidades
a sua volta. Não conhecem as cores, a música, nem, ao menos, as outras
vidas... animais.
Os
animais são seres mitológicos, imaginários, o que revela a distante interação
que o homem tem das outras formas de vida, colocando-se superior. Quando
há um perigo que assola ambos os lados, o homem não hesita em escolher seu semelhante,
deixando que o outro animal pereça. Mas diferente de nós, os animais não
menosprezam seus semelhantes pela diferenças de cor, religião, orientação
sexual, posição social, etc. Eles sequer têm isso. Vivem com a natureza. Vivem.
Suas vidas são muito mais preenchidas de cores que a nossa.
Jonas foge da cidade salvando Gabriel. |
Jonas
é permeado por memórias de emoções muito felizes e empolgantes, mas também
recebe as doloridas e sofridas. Nesse momento é interesse a questão que se faz
intimamente no espectador. Se o doador pode escolher quais memórias doar, por
que não privar o receptor das que são doloridas e sofridas? A resposta pra essa
pergunta é particular. A meu ver, isso acontece porque ele compreende o fundamental motivo da existência delas. O ser humano tem que sofrer tanto a
felicidade quanto a tristeza. Não só de dor vive um homem, nem muito menos
só de alegria. Não rimos o tempo todo. Devemos experimentar tanto a felicidade
quanto a tristeza, mas não podemos nos deixar levar por nenhuma delas; não
devemos nos aprofundar nem na dor nem na alegria, pois se isso acontecer, ficaremos entorpecidos e passaremos a ignorar às demais emoções, e quando
isso ocorre, deixamos de viver, afinal passamos a ignorar a vida. Para viver não podemos
nos privar de sofrer, sorrindo ou chorando.
Cena em que Jonas vê a cor vermelha no cabelo de Fiona. |
Independente
de tudo isso, o propósito do filme se concentra em destacar os sentimentos, a
emoção, a vida. Sem as emoções a nossa vida nem pode se chamar assim, viramos apenas
bonecos do sistema, para ele fazer conosco o que quiser. Não é à toa que é
justamente ele quem decide quantas horas você tem pra dormir, quando almoçar, quando voltar pra casa, como também quem vive e quem morre.